O tratado de Lisboa apresenta-se como um catálogo de alterações aos tratados anteriores
12.12.2007 - 19h38
Valéry Giscard d’Estaing compara o "novo" Tratado Reformador, o Tratado de Lisboa, com a "velha" Constituição Europeia de que foi um dos principais obreiros.
O público parece ter seguido com pouco interesse o acordo obtido em Lisboa, no seio do Conselho Europeu, com vista à adopção de um novo tratado constitucional. No entanto, penso que muitos gostariam de compreender a forma como os acontecimentos se desenrolaram. Vou tentar responder à seguinte questão: em que é que o tratado de Lisboa difere do projecto de tratado constitucional?
A diferença tem a ver mais com o método que com o conteúdo. O tratado constitucional resultava de uma vontade política expressa na declaração de Laeken, aprovada por unanimidade pelos membros do Conselho Europeu: o objectivo era simplificar as instituições europeias, tornadas ineficazes pelos últimos alargamentos, incutir maior democraticidade e transparência na União Europeia e “abrir a via a uma Constituição para os cidadãos Europeus”. Este objectivo reflectia-se na composição da Convenção, que reunia representantes do Parlamento Europeu e dos Parlamentos nacionais, dos Governos dos Estados-membros e da Comissão Europeia. Para mais, os seus debates eram públicos e todos os textos eram imediatamente publicados na Internet. Todos podiam pesar os prós e os contras de cada proposta. O projecto de tratado constitucional era um texto novo, inspirado por uma vontade política, e que substituía todos os tratados anteriores.
Para o tratado de Lisboa, o processo foi diferente. Foram os juristas do Conselho que foram encarregados de redigir o texto. Fizeram-no com competência e rigor, respeitando o mandato que lhes tinha sido entregue pelo Conselho Europeu em 22 de Junho último. E retomaram a via clássica seguida pelas instituições de Bruxelas, que consiste em modificar os tratados anteriores pela via das emendas: o tratado de Lisboa situa-se exactamente na linha dos tratados de Amesterdão e Nice, ignorados do grande público.
Os juristas não propuseram inovações. Partiram do texto do tratado constitucional, separaram-no em elementos, e inseriram esses elementos, um por um, sob a forma de emendas, nos dois tratados existentes: Roma (1957) e Maastricht (1992).
O tratado de Lisboa apresenta-se assim como um catálogo de alterações aos tratados anteriores. É ilegível para os cidadãos, que se vêem obrigados a consultar constantemente os tratados de Roma e de Maastricht, aos quais essas alterações dizem respeito. E, quanto à forma, estamos entendidos.
Quanto ao conteúdo, o resultado é que as propostas institucionais do tratado constitucional – as únicas importantes para os membros da Convenção – se encontram integralmente no tratado de Lisboa, mas numa ordem diferente e repartidas nos tratados anteriores.
Um exemplo: a designação de um presidente estável da União Europeia, que constitui o avanço mais prometedor do projecto, figurava no tratado constitucional no capítulo das instituições e órgãos da União. O artigo 22 dizia que “o Conselho Europeu elege o seu presidente por maioria qualificada para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez” e prosseguia com onze linhas descrevendo o papel desse Presidente.
Se procurarmos essa disposição no tratado de Lisboa encontramo-la na emenda 16 ao Capítulo III do tratado de Maastricht que diz: “é acrescentado um artigo 9B: o Conselho Europeu e o seu Presidente”. E no parágrafo 5: “O Conselho Europeu elege o seu presidente por maioria qualificada para um mandato de dois anos e meio, renovável uma vez” e o parágrafo prolonga-se por onze linhas descrevendo de forma idêntica o papel do Presidente
O mesmo exemplo poderia ser dado em relação ao papel e à eleição do Parlamento Europeu. O Artigo 9A do tratado de Lisboa reproduz palavra por palavra o Artigo 20 do projecto de Tratado Constitucional.
A conclusão é evidente. No tratado de Lisboa, redigido exclusivamente a partir do projecto de tratado constitucional, as ferramentas são exactamente as mesmas. Apenas mudou a sua arrumação na caixa de ferramentas. E a própria caixa foi modificada, utilizando um modelo antigo onde existem três cacifos nos quais é preciso vasculhar um pouco para encontrar o que se procura.
Existem no entanto algumas diferenças e três delas merecem uma nota.
Antes de mais, a palavra “Constituição” e o adjectivo “constitucional” são banidos do texto, como se dissessem respeito a coisas inconfessáveis. O conceito, porém, tinha sido introduzido pelos próprios Governos na declaração de Laeken (aprovada na altura por Tony Blair e Jacques Chirac). É verdade que a inscrição no tratado constitucional da parte 3, que descrevia as políticas da União, constituía sem dúvida uma solução menos feliz. A aparência podia fazer crer que se tentava dar-lhes um valor “constitucional”, ainda que o objectivo fosse unicamente o de reunir todos os tratados num só.
Por outro lado, suprime-se a menção aos símbolos da União: a bandeira europeia, que flutua por todo o lado, e o hino europeu que se pediu emprestado a Beethoven. Ainda que ridículas e destinadas a não ser aplicadas (felizmente), estas decisões são menos insignificantes do que parecem. Elas visam afastar toda e qualquer indicação que tenda a evocar a possibilidade de a Europa se dotar um dia de uma estrutura política. É um sinal claro de recuo da ambição política europeia.
Quanto às respostas encontradas para as exigências formuladas em França por certos adversários do tratado constitucional, é necessário constatar que elas são mais cedências de cortesia do que modificações substanciais. A expressão “concorrência livre e não falseada”, por exemplo, que figurava no Artigo 2 do projecto, foi retirada a pedido do presidente francês Nicolas Sarkozy, mas foi retomada a pedido dos britânicos, num protocolo anexo ao tratado que estipula que “o mercado interno, tal como é definido no Artigo 3 do tratado, compreende um sistema garantindo que a concorrência não é falseada”.
Acontece o mesmo com o princípio da primazia do direito comunitário sobre o direito nacional e a mesma coisa ainda com uma declaração de intenções louváveis mas sem conteúdo concreto, sobre os serviços de interesse económico geral cujo texto de referência não foi alterado no tratado.
Em contrapartida, a França vai poder ampliar em mais de um terço os seus direitos de voto no Conselho, graças ao princípio de dupla maioria introduzido pelo projecto do tratado constitucional.
Muito mais importantes, enfim, são as concessões feitas aos britânicos. A Carta dos Direitos Fundamentais – uma espécie de versão melhorada e a actualizada da Carta dos Direitos do Homem – é retirada do projecto e será objecto de um texto separado, o que permitirá que a Grã-Bretanha não fique obrigada por ela. No domínio da harmonização e da cooperação judicial, a Grã-Bretanha vê reconhecidos múltiplos direitos de saída e de regresso ao sistema.
Em resumo: depois de ter conseguido enfraquecer as propostas que visavam reforçar a integração europeia – como a recusa do título de ministro dos Negócios Estrangeiros da União Europeia – a Grã-Bretanha coloca-se numa situação de excepção em relação às disposições que lhe desagradam.
É fácil constatar que o texto dos artigos do tratado constitucional se encontra praticamente intacto, mas que se encontra disperso sob a forma de emendas dos tratados anteriores – que foram, eles próprios, reorganizados. É evidente que a opção não vai no sentido da simplificação. Basta consultar o índice dos três tratados para avaliar a dimensão do fenómeno!
Qual foi o objectivo desta subtil manobra? Antes de mais, fugir à obrigação do recurso ao referendo graças à dispersão dos artigos e à renúncia ao vocabulário constitucional.
Para as instituições de Bruxelas, foi uma forma hábil de retomar as rédeas, depois da ingerência dos parlamentares e dos políticos, representada pelos trabalhos da Convenção Europeia.
Desta forma, regressa-se à linguagem que Bruxelas domina e aos procedimentos que eles privilegiam, afastando-se mais um pouco dos cidadãos.
A fase seguinte será a das ratificações. Ela não deve encontrar grandes dificuldades – para além da Grã-Bretanha, onde um referendo levaria certamente a uma rejeição – pois a complexidade do texto e o seu abandono das grandes ambições contribuem para suavizar as suas asperezas.
Mas levantemos a tampa da caixa e olhemos para as ferramentas. Elas estão lá todas, tal como foram cuidadosamente elaboradas pela Convenção Europeia, e são inovadoras e eficazes: a presidência estável, a Comissão reduzida e recentrada, o Parlamento legislador de pleno direito, até o ministério dos Negócios Estrangeiros lá está - apesar do seu chapéu demasiado apertado -, a tomada de decisões por dupla maioria de Estados e cidadãos e a carta de direitos fundamentais mais avançada do planeta.
No dia em que as mulheres e os homens, animados de grandes ambições para a Europa, decidirem servir-se delas, poderão despertar, sob a cinza que o cobre hoje, o sonho ardente de uma Europa unida."