“And so I ask myself: 'Where are your dreams?' And I shake my head and mutter: 'How the years go by!' And I ask myself again: 'What have you done with those years? Where have you buried your best moments? Have you really lived?" Fyodor Dostoyevsky, White Nights

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O Mito de Sísifo II



"O sentimento do absurdo pode esbofetear qualquer homem à esquina de qualquer rua. Em si mesmo, na sua nudez desoladora, na sua luz sem esplendor, é inapreensível. Mas até essa dificuldade merece reflexão. É provavelmente verdade que um homem nos fica sempre desconhecido e que nele sempre subsiste qualquer coisa de irredutível que nos escapa. Mas praticamenteconheço os homens e reconheço-os pela sua conduta, pelo conjunto dos seus actos, pelas consequências que a sua passagem suscita na vida. Da mesma maneira posso praticamente definir, praticamente apreciar todos esses sentimentos irracionais que a análise não consegue captar. Para tanto me basta reunir a soma das suas consequências na ordem da inteligência, surpreender-lhes e fixar-lhes a face, delimitar-lhes o universo. É certo que, aparentemente, lá por ter visto cem vezes o mesmo actor, nem por isso o conheço pessoalmente melhor. No entanto, se eu adicionar os heróis que ele encarnou e disser que o conheço um pouco mais por ocasião da centésima personagem recenseada, sente-se que há aqui uma parte de verdade. Porque este paradoxo aparente é também um apólogo. Tem uma moralidade. Ensina que um homem se define tão bem através das suas comédias como através dos seus impulsos sinceros. Assim acontece, um tom abaixo, com os sentimentos, inacessíveis no coração, mas parcialmente traídos pelos actos que eles animam e pelas atitudes de espírito que pressupõem. Vê-se bem que defino assim um método. Mas vê-se também que esse método é de análise e não de conhecimento. Porque os métodos implicam metafísicas, atraiçoam, sem se darem conta disso, as conclusões que por vezes pretendem não conhecer ainda. Assim, as últimas páginas de um livro já estão nas primeiras. Esta ligação é inevitável. O método aqui definido confessa o sentimento de que todo o verdadeiro conhecimento é impossível. Só as aparências podem enumerar-se e o clima fazer-se sentir.
Esse inacessível sentimento do absurdo, talvez o possamos então atingir em mundos diferentes, mas fraternais, da inteligência, da arte de viver, ou simplesmente da arte. O clima do absurdo está no início. O fim é o universo absurdo e essa atitude de espírito que ilumina o mundo a uma luz que lhe é própria, a fim de fazer resplandecer o rosto privilegiado e implacável que esta lhe sabe reconhecer."

Camus, A. (1974). O Mito de Sísifo. Lisboa, Livros do Brasil, p. 23.

O Mito de Sísifo


"Do mesmo modo e em relação a uma vida sem lustro, o tempo carrega cononosco. Mas um momento chega em que temos de ser nós a carregá-lo. Vivemos sobre o futuro: "amanhã", "mais tarde", "quando tivermos uma boa situação", "com a idade hás-de compreender". Estas inconsequências são admiráveis, porque enfim, trata-se de morrer. Um dia vem, no entanto, e o homem constata ou diz que tem trinta anos. Afirma assim a sua juventude. Mas ao mesmo tempo situa-se em relação ao tempo. Toma aí o seu lugar. Reconhece que está num certo momento de uma curva, que confessa ter de percorrer. Pertence ao tempo e reconhece nesse horror que o empolga o seu pior inimigo. Amanhã, ele desejava amanhã quando todo o seu ser se lhe devia recusar. Esta revolta da carne é o absurdo."
Camus, A. (1974). O Mito de Sísifo. Lisboa, Livros do Brasil, p. 25.


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