Houve
inúmeras transformações a respeito da infância ao longo do tempo, bem
como da família e da educação, em especial a partir do século XVIII,
cujas produções discursivas construíram a imagem da infância atrelada à
pureza, ingenuidade e sensibilidade. É Freud quem, em 1905, desconstrói o
saber da época ao trazer à tona a questão da erótica infantil,
defendendo a tese segundo a qual não há infância desprovida de
sexualidade; questionando, assim, a imagem pura e insuspeita da criança
inventada pela cultura dos últimos séculos.
Em
1909, Freud torna-se precursor do trabalho psicanalítico desenvolvido
com crianças, ao publicar o caso do Pequeno Hans, que demonstrou na
prática o que já havia apresentado em tese: a sexualidade infantil e
seus avatares. Hans sofria de fobia de cavalos e Freud acompanhou
indiretamente, mais aos moldes de uma supervisão, o desenvolvimento da
análise a partir da escuta do pai, – que suportou com firmeza e atenção a
livre-verbalização do filho a fim de ajudá-lo a superar seu sofrimento.
Hans
demostrava um interesse acentuado pelo seu genital, o “pipi”. No
entanto, tinha que lidar com a ameaça da mãe de que o médico o cortaria
fora caso ele não abandonasse a masturbação. Num primeiro momento, a
ameaça não foi valorizada pelo menino, porém, mais tarde, repercutiu de
modo determinante nos caminhos da formação de seu sintoma fóbico.
Embora
Freud não tenha atendido diretamente uma criança, foi ele quem
inaugurou o campo para este trabalho a partir da exploração inexaurível
das fantasias do Pequeno Hans, sem recorrer ao brinquedo como
instrumento de expressão e sem reduzi-lo aos seus postulados teóricos
preexistentes.
Freud não era um homem
de superfície e estava aberto para o novo, não se contentando com as
primeiras impressões a respeito do caso, nem mesmo com o que já havia
descoberto sobre a sexualidade infantil.
A
psicanálise é um dispositivo terapêutico ético, e não moralista, visto
que o segundo parte da premissa de que há um saber professoral prévio
que possa dar conta do sofrimento do outro. O psicanalista precisa
escutar para aprender, mesmo quando se trata de uma criança, que, assim
como o adulto, também é um sujeito do desejo, da particularidade. Tanto
no trabalho com crianças como com adultos, a escuta deve ser endereçada
para que as palavras brotem do inconsciente e possam representar o
sofrimento daquele que se queixa.
É
claro que o tratamento com crianças traz consigo algumas especificidades
que delimitam seu território, pois o adulto possui recursos mais
sofisticados em termos de linguagem e cognição, dos quais a criança
carece. O aspecto lúdico introduzido no tratamento facilita a expressão
da criança acerca de suas inibições, sintomas e angústias. Entretanto, o
conteúdo inconsciente apresentado ao analista através do recurso dos
brinquedos não se diferencia dos conteúdos relatados pelos pacientes
adultos a respeito de seus sonhos, fantasias e descompassos do dia a
dia.
O infantil inerente ao
inconsciente é ineducável em razão da lei que o rege: a atemporalidade. A
cronologia está para a infância assim como a atemporalidade para o
infantil. A marca do infantil atemporal no inconsciente representa o
selo que autentica as raízes do nosso sofrimento neurótico, levando a
atenção do analista a recair sobre o infantil independentemente do fato
dele advir do discurso de um octogenário ou de uma criança.
O
trabalho psicanalítico com crianças deve se atentar para o fato de que
há uma diferença fundamental em relação ao manejo clínico, dado que
existe o sintoma da criança e o sintoma na criança.
Anos
atrás, atendi um garotinho de seis anos de idade, cuja queixa dos pais
girava em torno do mutismo episódico dele na escola. Ao escutar a mãe,
descobri que o garotinho tinha sido impedido de se relacionar e
conversar com a tia com quem mantinha fortes ligações afetivas. Por quê?
Porque o pai havia brigado com ela e, na intenção de puni-la, impediu
que o filho a encontrasse. Ou seja, a ordem do pai que inviabilizava a
socialização primária do filho no interior da família estava produzindo
efeitos sintomáticos no interior da socialização secundária na escola.
Se o pai do Pequeno Hans atuava de modo a libertar o filho do sofrimento
inerente às dificuldades encontradas no atravessamento do Édipo, o pai
do garotinho produzia sofrimento no filho sem conseguir localizar em si
as causas que o determinavam. A criança antes da proibição do pai
relacionava-se naturalmente com os coleguinhas da escola, sempre de
forma alegre, lúdica e comunicativa.
Nota-se
com isso que o trabalho desenvolvido na clínica com crianças mostra-se
ainda mais problemático na medida em que, às vezes, seu progresso
depende também da participação efetiva dos pais. É comum, por exemplo,
os pais interromperem o tratamento quando percebem que algo de si e/ou
da dinâmica familiar deverá ser modificado para que haja transformação
possível no sofrimento da criança. Em alguns casos, não há consciência
acerca desta equação que os implica no tratamento. O analista é
convocado a devolver o filho aos pais como se este tivesse passado por
uma assistência técnica e fosse um objeto assexuado, consertável e sem
desejo próprio.
No caso da fixação na
masturbação do Pequeno Hans, efeito do descobrimento de sua
sexualidade, marcada pela entrada no Édipo a partir da fase fálica; –
quando a criança percebe pela via do estímulo que seu genital é fonte de
prazer, – a ameaça da mãe de que o médico cortaria seu “pipi”
repercutiu em Hans gerando angústia e sofrimento no “só depois”. Isto é,
quando presencia à distância o nascimento da irmãzinha, em casa, às
voltas com balde de água e sangue, gritos de dor e um médico assumindo a
cena; Hans confere sentido àquela primeira ameaça da mãe ao fazer
menção a um terceiro castrador.
A
constituição do trauma implica a existência de dois tempos para que se
entenda seu funcionamento. Freud destaca o primeiro tempo do trauma da
castração a partir da masturbação infantil. O menino, sofrendo
constantes ameaças, só sentirá a incidência da angústia num segundo
tempo, no “só depois”. Frente à constatação da castração do outro, a
primeira experiência de ameaça pode produzir sentido, fato que levou
Hans a significar retroativamente as ameaças da mãe no passado ao
testemunhar o nascimento da irmã executado por um médico.
A
entrada de Hanna no ambiente familiar também gerou consequências
dolorosas em Hans, ao retirá-lo da sua posição privilegiada de sua
“majestade, o bebê”, tornando-o secundário em relação aos cuidados
maternos, cujo sintoma fóbico a respeito dos cavalos o reaproximou da
mãe já que não conseguia sair de casa.
A
grande inovação de Freud foi entender o sintoma não como um defeito ou
uma degeneração, e sim como um modo de expressão do ser.
Sintomas são palavras congeladas e defesas diante da intolerabilidade de
alguns sofrimentos. Dito de outro modo, o sintoma é resultante de um
conflito entre o desejo e a lei que o censura.
Freud
logrou êxito através do trabalho indireto com Hans, visto que este
conseguiu superar, pela via da livre-expressão de seus medos e
fantasias, seus sintomas e sofrimentos. Passou a frequentar a rua e a
brincar nos parques sem mais temer os cavalos. O pai de Hans considerou a
melhora do quadro fóbico do filho mas acreditava haver um traço de
distúrbio remanescente: o de fazer perguntas reiteradamente. Não
concordo com o pai. Fazer perguntas não pode ser pensado como um traço
de insalubridade. Pobres de nós que “adoecemos” quando perdemos a
capacidade da criança de ser curiosa e, com isso, fazer perguntas.