Por Francisco Louçã
Será hoje leiloada uma carta de Darwin a um então desconhecido, o jovem advogado F.A. McDermott, que o inquiria sobre as suas convicções religiosas.
Durante muitos anos, Charles Darwin tinha escondido o que pensava da
religião, embora o seu livro sobre a evolução das espécies tenha sido
lido como um questionamento da doutrina bíblica — e era. Ou porque a sua
mulher era crente, ou por temer o escândalo que as suas opiniões
provocariam, nunca tinha respondido a questões semelhantes e que tinham
sido insistentes. Mas, aos 71 anos (morreria dois anos mais tarde)
respondeu lapidarmente.
Escreve Darwin que não acredita na Bíblia como uma revelação divina
nem que Jesus Cristo fosse filho de Deus. Nas duas respostas, Darwin
aponta o essencial: essas duas ideias são crenças (e ele não
acreditava). Acreditar ou não é o que se chama uma questão de fé e,
portanto, o seu debate fica fora do alcance da razão e da argumentação.
Não há forma racional de estabelecer essas vinculações, seja da Bíblia à
palavra de um Deus seja a de Jesus Cristo como seu filho. Isso, aliás,
não diminui o significado da figura histórica de Jesus, que marcou o
ascenso de uma seita cristã dentro do judaísmo – para usar as palavras
de Frei Bento Domingues, se o estou a citar bem – e se transformou numa
das grandes religiões mundiais. Ou, como escreve Anselmo Borges,
sacerdote e teólogo fascinante, Cristo, “blasfemo religioso e subversivo
social e político”, haveria de marcar o nosso tempo.
Miguel Portas ofereceu-me uma vez um livro deslumbrante, “A Verdadeira História de Jesus”,
de E.P. Sanders, professor de ciências da religião a Universidade de
Oxford e depois na de Duke, nos Estados Unidos. O livro compila a
evidência histórica disponível e verificada sobre a heresia cristã e
sobre o seu impacto na época, conduzindo-nos através da Bíblia e de
muitos outros escritos ao encontro dos sinais dessa revolução, que
demonstra como foi profunda e como se prolongou no tempo.
Ao ler a carta de Darwin, que não conhecia, pergunto-me quanta
coragem foi preciso para que aquele cientista do seu tempo pudesse
responder com honestidade à pergunta que o excluía do senso comum da
sociedade britânica, conservadora e autoritária, temente e obediente, em
nome da sua ciência que era a sua convicção mais profunda. E noto o
cuidado, talvez até carinhoso, com que ele escolhe as palavras e se
diferencia do que recusa, porque não encontra justificação racional para
esses dogmas, mas nada mais dizendo sobre a fé ou opinião dos outros.
Darwin, grande senhor da ciência moderna, respeitando o seu
correspondente, era um homem mais tolerante do que alguns bispos e
ayatollahs dos tempos de hoje.
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